domingo, 23 de setembro de 2007

Descoberta, tédio não

Ouvi discos. De encontro à opinião de pseudointelectuais, ainda se produz decência musical (nacional). Pouco material, de fato, mas essa restrição é coerente com nosso momento: Renan permanece no Congresso; o PAC apanha de litígios; a seleção feminina de futebol joga melhor que a masculina; a Globo, o Edir Macedo.

Um retrospecto. O perído entre 1958 e 1963 e a década de 80 encerram as duas principais manifestações musicais da nossa história. Não se trata de descaso, por exemplo, ao Tropicalismo ou ao samba inaugural do início do século XX (deste, aliás, gosto bastante). Quando se pensa em música, a completa qualidade de letra, melodia, inovação não-parcial e elevação mundial é o modo de preparo do bolo. E somente a bossa-nova e o rock da década exposta é que conseguiram todos os atributos de uma só vez.

A tríade Vinicius, Tom e João produziu completo sucesso. Esse trabalho elevou a bossa brasileira à (chega de) saudade. Aquele com a letra; esse com a reestruturação da harmonia brasileira; este com a batida seca no violão, com o canto suave. "A felicidade", composição lançada em 59, registrou nesse mesmo ano 24 regravações; trilhou o premiado "Orfeu do Carnaval", filme de Marcel Camus. "Garota de Ipanema", iniciada em disco em 1963, tornou-se o expoente musical nacional: segunda música mais regravada da história (do mundo). No mesmo ano de divulgação, conseguiu uma versão em inglês, "The girl from Ipanema" (Tom Jobim a tocou ao lado de Frank Sinatra, no Carnegie Hall). Inúmeros artistas estrangeiros - entre eles Louis Armstrong, Nancy Wilson, Peggy Lee, Stephane Grappelli - renderam-se aos encantos da menina bronzeada, da moça que carrega, em meio à multidão, a cadência que hipnotiza a voz poética. Interessante, ainda, é perceber a intertextualidade literária que a música sugere: o spleen moderno e a nova composição apresentados por Baudelaire; o obscuro To be or not to be(...).

O rock dos anos 80 trouxe a caoticidade temática à nossa música. Falava-se de amor, de violência, de política, de futebol, de praia (em certos casos, tudo de uma vez só). Nomes como Cazuza e Renato Russo despontaram como heróis da geração Coca-Cola que buscava uma ideologia. Todavia, essa devoção exacerbada ofuscou bandas mais brilhantes - e nesse ponto chego aos Engenheiros do Hawaii. Em Curitiba, há alguns dias, o novo cd deles - "Novos Horiozontes".

A banda mais odiada. A sociedade braseileira não reconheceu (e ainda não reconhece) a profundidade gessingeriana. Com a média de 1,8 livro/ano, normal que poucos ouvintes entendam (e reflitam sobre) as referências a Sartre, Huxley, Nitzsche, Platão, Camus, Drummond, Hesse, Orwell, Sclyar, Santo Agostinho, Goethe, Mallarmé criadas nas letras que a banda apresentou. Na sonoridade, composições que remontam à MPB e ao progressivo inglês setentista introduziram um avanço importante na pauta nacional. Objetivo: criação de um estilo rebelde que fugisse da santíssima trindade "sexo drogas rock and roll".

O novo cd mantém a proposta de mudança. "Eu não consigo odiar ninguém" é música cujo verso foi composto no ideal de Gandhi: o líder indiano afirmou-se "incapaz de odiar qualquer ser vivo". Através desse lema, o mahatma conseguiu a independência da Índia. Será que não serve, para o Brasil, uma resistência pacífica? "No meio de tudo, você" acrescenta amor ao desespero. Amar (restrito, agora) representa novamente a possibilidade positiva da sociedade que acha lindo trabalhar excessivamente; que elege políticos pela "capacidade" lingüística que têm; que se contenta com Coca-cola e com a mídia impositiva. "Guantánamo": me tira daqui / não adianta gritar / me ajuda a fugir / ninguém vai escutar / não agüento mais: eu não tenho a resposta. Nome de música que remete à prisão que os Estados Unidos mantêm no sudete de Cuba. Nos livros, consta que os norte-americanos praticam, lá, atos que violam o Tratado de Genebra. Interação com História(s): desespero perante a crise, sem drogas para aliviar a tensão, sem canções que serenam (mas sempre a esperança de alguém atrás da porta). Ainda, um comentário sobre "Quebra-cabeça": a canção, ao mesmo tempo que trata de uma relação amorosa, pode ser interpretada como metamusical: o refrão é pouco, mas é tudo que eu posso oferecer / é quase nada mas é tudo que eu tenho a oferecer talvez signifique um eu que se desculpa por não conseguir ter respostas claras, soluções precisas pras desgraças expostas. Ele reconhece que tentou e que essa tentativa não cura os enfermos existenciais (sem distorções). Mesmo assim, oferece este mínimo como reflexão: a música, o cd, a obra da banda - novos horizontes pensantes. Variações de um mesmo tema pois, na real, o que importa é muito pouco.

A prisão: sociedade. As torturas: Renan, PAC, seleção, Globo, Edir. Talvez, a resistência pacífica não vingasse no Brasil porque o povo é pacífico até demais. Tudo bem que o sistema aliena mas... Até que ponto as pessoas não se reflexivamente alienam? Acreditam em pseudointelectuais e, por isso, continuam ouvindo seu guarda eu não sou vagabundo. Vagabundo não é bem a tachação... Ainda há salvação musical. Sim: basta aceitar a qualidade e não render-se a bundas com celulite. Alguns temas são recorrentes, alguns não.

3 comentários:

Simone Petry disse...

é Mozer...aquela tradução pareceu um parto...mas prematuro rs..tivemos 40 dias para por tudo em ordem...Graças ao Caetano que é genial e o tradutor da obra em si (eu traduzi algumas, muitas rs, citações que não achamos traduzidas para o português) tudo ficou no tempo certo. Mas me ralei um monte...ralação da boa...e isso vale a pena...tanto quanto ler este texto muito legal que vc escreveu e que vai muito de encontro com o reconheço como boa musica.

bem legal

super abraço

Anônimo disse...

Boa música ainda existe, mas é uma pena que pouquíssimas pessas saibam reconhece-la.
Já te disse que o Humberto é o amor da minha vida né?? hehehe
Beijuss

Giuliano Gimenez disse...

Tirando um pouco a voz do gessinger, eu vou cultivando raízes.
Vale o melhor album dos Engenheiros do Hawaii Várias variáveis.