domingo, 21 de outubro de 2007

Drops de Deus

Credo! Muito acontecimento para poucos dias. Morte, título, Nobel, corrida presidencial russa; expectativas. E ainda leio absurdos como "Eita, vida parada!". Possibilidades: desocupação ou o que chamo de alienação (des)intelectual. Piora quando a conjunção alternativa é trocada pela aditiva.

Paulo Autran, o mito do teatro nacional, faleceu. Levou consigo a trajetória do gênero. O homem das faces literárias, com máscaras de Shakespeare (Rei Lear), de Shaw (Pigmalião), de Molière (O avarento), de Sartre (Mortos Sem Sepultura), representou inclusive a realidade: fingiu a dor que deveras sentia. Declamava que fumava numa interpretação gratuita de uma campanha não-divulgada: o hábito que derruba 85 anos. Obteve reconhecimento (mas não do Presidente Lula, que, assim como FHC procedeu quando da morte de João Cabral de Melo Neto, não foi ao enterro do astro). Magistralmente, suas principais datas se confundem com a História: nasceu no primeiro centenário da Independência do Brasil (mesmo ano da Semana de Arte Moderna); morreu no dia da padroeira nacional.

Tenho uns 500MB de poesias que ele recitou: qualidade sonora e dramática! 90 peças, 11 filmes, 9 participações televisivas e uma aparição na festa de Natal do Palácio Avenida. Parcerias? A mais bela ocorreu numa amizade - Maria Antonieta Portocarrero Thedim.

Com uma perda assim, mencionar que a próxima disputa presidencial na Rússia será entre Putin e Gasparov é secundário. No mesmo nível, mantêm-se o título do Kimi Räikkönen, o Nobel da Doris Lessing, o afastamento por cansaço que Renan Calheiros solicitou e recebeu. Fatores importantes mas, exceto a vitória do homem-de-gelo, questionáveis em seus graus: o campeão do xadrez pode ser paciente demais no governo; a inglesa foi laureada por causa de meia dúzia de asneiras espaciais ou feministas (sim, ela não soube juntar os dois temas) que produziu em seus 88 anos; o presidente do Senado marcou mais um ponto na disputa com a nação: Renan 2 X -2 Brasil.

Imortais não choram. Ensinam, ao contrário, que se deve quebrar o agito que muitos negam ter. Terêncio: "homo sum: humani nihil a me alienum puto". De fato, não podemos desconsiderar nenhum detalhe dos humanos ao nosso redor. Mas os da morte pesam mais, ah!, como pesam... Ainda mais se for a morte de gente boa. Como disse o cantor predileto, "quando se anda em círculos, nunca se é bastante rápido". Metonímia: um pouco de cada assunto já serve para separarmos o que vale a pena, o que tem solução - e quem marcou corações.

Extra:
- Link para um video-tributo a Paulo Autran: http://www.youtube.com/watch?v=b5P1mdn5V8E;
- Link para baixar o cd Quatro séculos de poesia, coletânea de poemas nacionais declamados por Paulo Autran: http://d.turboupload.com/d/1214638/4secPA.rar.html.


quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Superação da futilidade pseudonímica ou a presença heteronímica

Ode marcial
[Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)]

Inúmero rio sem água — só gente e coisa,
Pavorosamente sem água!


Soam tambores longínquos no meu ouvido
E eu não sei se vejo o rio se ouço os tambores,
Como se não pudesse ouvir e ver ao mesmo tempo


Helahoho! Helahoho!

A máquina de costura da pobre viúva morta à baioneta...
Ela cosia à tarde indeterminadamente...
A mesa onde jogavam os velhos,


Tudo misturado, tudo misturado com os corpos, com sangues,
Tudo um só rio, uma só onda, um só arrastado horror


Helahoho! Helahoho!

Desenterrei o comboio de lata da criança calcado no meio da estrada,
E chorei como todas as mães do mundo sobre o horror da vida.
Os meus pés panteístas tropeçaram na máquina de costura da viúva que mataram à baioneta

E esse pobre instrumento de paz meteu uma lança no meu coração

Sim, fui eu o culpado de tudo, fui eu o soldado todos eles
Que matou, violou, queimou e quebrou,
Fui eu e a minha vergonha e o meu remorso com uma sombra disforme
Passeiam por todo o mundo como Ashavero,
Mas atrás dos meus passos soam passos do tamanho do infinito.


E um pavor físico de encontrar Deus faz-me fechar os olhos de repente.
Cristo absurdo da expiação de todos os crimes e de todas as violências,
A minha cruz está dentro de mim, hirta, a escaldar, a quebrar
E tudo dói na minha alma extensa como um Universo.


Arranquei o pobre brinquedo das mãos da criança e batil-lhe.
Os seus olhos assustados do meu filho que talvez terei e que matarão também
Pediram-me sem saber como toda a piedade por todos.


Do quarto da velha arranquei o retrato do filho e rasguei-o,
Ela, cheia de medo, chorou e não fez nada...
Senti de repente que ela era minha mãe e pela espinha abaixo passou me o sopro de Deus.


Quebrei a máquina de costura da viúva pobre.
Ela chorava a um canto sem pensar na máquina de costura.
Haverá outro mundo onde eu tenha que ter uma filha que enviúve e a quem aconteça isto?


Mandei, capitão, fuzilar os camponeses trêmulos,
Deixei violar as filhas de todos os pais atados a árvores,
Agora vi que foi dentro de meu coração que tudo isto se passou,
E tudo escalda e sufoca e eu não me posso mexer sem que tudo seja o mesmo
Deus tenha piedade de mim que a não tive a ninguém!


O maior poeta modernista. Fernando Pessoa não precisou de poemas com vinte páginas para fixar-se. Melhor: produziu-se sob heterônimos (72, segundo Teresa Rita Lopes), através dos quais variou sobre a mesma arte - e polemizou. Um deles - autor do poema acima, que com Ricardo Reis e Alberto Caeiro forma a principal tríade das vidas extras do autor português - atrapalhou o único namoro que Pessoa teve. Entendeu? A ficção destruiu a realidade. Isso é profundidade (sempre poética) que hipnotiza teorias, estudiosos e leitores. Ferdinand Personne era um obscuro.

Não sofria de problemas mentais. A consciência dos heterônimos (nunca pseudônimos) gerou-lhe muitas reflexões. Pessoa declarou "Muitos deles exprimem idéias que não aceito, sentimentos que nunca tive." acerca dos outros eus. Excesso de histérico talento. E de trabalho. O Guardador de rebanhos (Alberto Caeiro) foi escrito numa só noite, em 1914. Nesse mesmo ano, o Reis e o de Campos entraram na brincadeira literária. Sobrou até pra mulherada: as sensações de Maria José. Entretanto(s), pensemos sobre os três principais.

Alberto Caeiro se tornou o mestre dos outros dois. Em amplo sentido. Sua obra O Guardador de rebanhos traz a filosofia de Nietzsche aplicada à antipoesia. O poeta camponês apostou no sensacionismo como percepção literária. Não acreditava na alma. Interpretou a manifestação lingüística como parcial empecilho à reprodução da sinestesia: pregou a quebra da linguagem puramente mimética. A palavra passou a entrar na engrenagem da produção, porque tem influência direta no "por trás" do material real. Questionou, também, a eficácia cristã. Morreu vítima de tuberculose.

Álvaro de Campos, talvez o mais feio dos três por causa do óculos defeituoso que usava, também se voltou ao sensacionismo. Negou o material para penetrar naquilo que se sente ao enxergar o concreto. Mas, se para Caeiro a sensação era suficiente, de Campos buscou a semântica secundária que o sentir provoca. Os signos lingüísticos novamente estavam em alta - deveriam servir de ferramenta na busca incansável da interpretação dos sentidos. Isso explica a constante presença, por exemplo, de onomatopéias em suas poesias. Mais moderno que os outros; mais experimental. O poema que abre o post traz um estilo clássico - ode fúnebre - submetido a tendências modernistas - versos exclamativos e brancos, métrica deslocada, diversidade temática. Figurou principalmente entre os Futuristas.

Ricardo Reis, o médico que não tratou de Pessoa (trocadilho), é importante para nós: em determinado momento, viveu em terras tupiniquins. Foi um assíduo seguidor das formas clássicas, talvez pela forte leitura que realizou de obras latinas. Inclusive, a tentativa de Horácio (mascaração do sofrimento) aparece em sua produção. Foi o que mais "se distanciou" do lente Caeiro, principalmente no que diz respeito à palavra: esta deveria representar diretamente a natureza, o homem, o mundo.

Mas... E o ortônimo? Fernando Pessoa, só pelos "outros", já se tornou imortal. Mas criou obras precisas e definitivas com a assinatura própria. "O poeta é um fingidor / finge tão completamente / que chega a fingir que é dor / a dor que deveras sente". Sentiu, como poucos, a necessidade de expressar-se em várias vozes (singulares entre si). Tranformou em literatura o desvio de linhagem que carregava. Fingiu acreditar em diferentes possibilidades e deu vida às manifestações diversas que muitos não têm coragem de exprimir. Fantasiava-se no real e no imaginário (Chuva Oblíqua, assinado como próprio, apresentou poemas de Alberto Caeiro; num encontro marcado com José Régio, misteriosamente quem apareceu no lugar de Pessoa foi Álvaro de Campos). Na produção, destacou-se o sebastianismo; a busca pelo herói, pelo patriotismo histórico; aproximação a Camões; influência do orientalismo, do cristianismo gnóstico, do teosofismo, do racionalismo, da maçonaria.

Tratou da vida como um todo. Por ser incapaz de, sozinho, dar conta de todo o histórico humano, figurou(-se) nos hetenônimos. Escavou duplamente a realização literária. Buscou o tudo. Realizou o tudo. Mas não se sabe ler a mágica impossível que existe nos versos pessoanianos. Concordo com Harold Bloom (certa raridade, que explicarei num futuro não muito distante): o mais influente poeta do século XX. Que Drummond, Tom Jobim, Dulce Pontes comprovem a habilidade de ser vários. "I know not what tomorrow will bring...". Pessoa também escreveu em inglês (e muitos).

Obs.: eu tenho um cd com poesias do Fernando Pessoa declamas. Quem quiser ouvir - avise!