segunda-feira, 14 de março de 2011

Um exercício literário meu: conto.

Imagens da traição

Ao voltar do quintal, percebi que vovô, minuciosamente, recontava para mamãe os acontecimentos do passado da família. Ela ouvia-o sofrivelmente, talvez ainda abalada pelo recém sepultamento de minha avó. Ambos acabaram por afundar-se nas lembranças e esqueceram, quando saíram da sala, uma caixa de sapatos em cima do sofá. Não hesitei: corri e apanhei-a, atendendo a uma suspeita de que se trataria de um sacro escopo.

Ao abrir a caixinha, certo trauma me voltou à mente. Um conjunto de fotografias fez-me recordar a primeira festa da família de que participei (verão de 86). A parentada se divertia quase disfonicamente até que um homem soturno apareceu na porta. O cavalheiro cumprimentou homens e mulheres rapidamente, mas demorou-se significativamente na saudação à minha avó. O porquê desse cumprimento alongado imediatamente soou claro para todos da família, exceto para vovô – que devido à bebedeira, ou simplesmente por ingenuidade, só reconheceu a conotação daquela imediata figura masculina ao ouvir dos lábios da esposa:

- Estou indo embora com esse homem!

As próximas fotografias… Ah!, em cada uma se encerravam pedaços diferentes da tristeza de vovô. Via-se, por exemplo, um tio que, se a memória não me trai, argumentava meia dúzia de palavras esvoaçantes. Em outra foto, angustiava o desespero da minha mãe ao perceber que a família, a partir daquele instante, desestruturar-se-ia.

Houve até quem defendesse a atitude da minha avó. Vejo, em um negativo amassado, um tio criticando vovô por causa da choradeira – alegava que se tratava de mau exemplo para os mais novos. Em um retrato borrado, irritou-me o cinismo de duas tias, solteiras, que se sussurravam:

- Papai foi muito manso para não perceber…
- No fundo, ele merece!

Mas só havia uma culpada pela desestruturação da família: minha avó. Aliás, chamá-la de "avó" era uma vingança: eu fizera questão de, e instantes, esquecer seu nome. E continuei odiando-a mesmo quando, cinco meses subsequentes à tragédia, ela voltou para casa (fora abandonada pelo amante). Vovô, mergulhado na eterna paixão, recebeu sorridente a companheira. Uma das fotos constantes na caixa de sapato era exatamente a do dia em que ela retornara - sorriso cínico escondido no batom- ao lado de um vovô radiante.

Necessário informar: na caixinha sagrada, existem pelo menos mais cinco fotos de “voltas” da minha avó.

Por isso, naquele dia em que consegui descobrir o que havia dentro da caixa de sapatos de vovô, não derramei nem sequer uma lágrima. No enterro da minha avó, duas horas antes de eu abandonar o quintal, gargalhei em vez de chorar: outra forma de desforra. E enquanto atentava para as demais fotos presentes na caixa de sapato de vovô, sentenciei austeramente: morta, minha avó não incomodaria mais.

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